A Paris de Beauvoir e a Paris da #Manifpourtous: a luta pela liberdade continua

Como visitar Paris e não se lembrar de Simone de Beauvoir? Sobretudo ao passar pelos famosos cafés onde ela e Sartre passaram boa parte de suas vidas e que hoje são pontos turísticos obrigatórios para quem visita a cidade dos intelectuais.

Beauvoir e Sartre foram protagonistas de uma história amorosa bastante singular. Se diz muito por aí que eles estavam “à frente de seu tempo”. Expressão curiosa porque pressupõe que os tempos atuais seriam “mais evoluídos” e mais adequados para os relacionamentos “à la Sartre e Beauvoir”.

A escritora enfrentou muita resistência para assumir sua vida pessoal publicamente, expondo seus motivos e escolhas para não se casar, para não ser mãe, para ter um relacionamento aberto com Sartre, para sair com mulheres, enfim, para seguir um estilo de vida diferente da grande parte das mulheres de seu tempo, mas parece que sua maior dificuldade de fato foi ser uma escritora mulher em um mundo machista. Segundo a própria Beauvoir no documentário sobre sua vida, “Na França, quando se escreve e se é mulher, é o mesmo que entregar um pau para vos baterem.”

Hoje, Simone de Beauvoir é considerada uma das grandes escritoras francesas, com direito inclusive a uma ponte com seu nome, a Passerelle Simone de Beauvoir, que liga o 12º Arrondisement à Biblioteca Nacional da França. Nada mal para uma escritora cuja vida política foi marcada pelos ataques que sofreu por ser justamente uma mulher escritora.

No entanto, sabemos que a história não é algo que caminha a passos largos na direção do progresso e da libertação sexual. A vida social é complexa e a França dos dias atuais  encontra ainda pontos de resistência de pautas que defendam a liberdade sexual de homens e mulheres.

Um exemplo disso foram as recentes manifestações francesas, ocasionadas pelo debate social em torno da Lei Taubira, promulgada em 2013, e que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e também a adoção de crianças por casais homossexuais. Além de serem contrárias a essa Lei, as manifestações, conhecidas aqui por Manif Pour Tous (Manifestação para todos) e que circulam nas mídias sociais com a hashtag #Manifpourtous, são especialmente contra a  PMA – Procréation Médicalement Assistée  (Procriação Medicamental Assistida) e a GPA Gestation Pour Autrui (Gestão por outro, conhecido no Brasil como barriga de aluguel).

Segundo os organizadores da Manif Pour Tous, criada e liderada por uma militante católica francesa, não se pode de forma alguma aceitar a GPA, por exemplo, pois isso seria o mesmo que “ser cúmplice do desenvolvimento de uma nova forma de tráfico humano que conduz e reduz as mulheres a seus úteros e à exploração.” Para esse grupo de francese, a mãe de aluguel inevitavelmente “conduz à mercantilização da criança porque a criança torna-se assim um objeto de contrato”.

Polêmicas à parte, sobre a questão da barriga de aluguel existente também no Brasil, essa linha de pensamento está estreitamente ligada à ideia de que casais do mesmo sexo não só não deveriam se casar porque acabariam com as famílias e extinguiriam a humanidade (pois eles não poderiam procriar), mas sobretudo defendem que eles também não podem adotar, pois, segundo os defensores da não adoção por casais homossexuais, estaria-se assim furtando à criança o seu direito de ser filho de 1 pai e de 1 mãe. Como se muitos dos casos de crianças em fila de adoção não tivessem como responsáveis diretos o pai e a mãe biológicos, esses seres únicos e singulares, pilares da família cristã! Família esta “devidamente” representante pela logomarca da Manif Pour Tous.

Mas, nem todos os franceses estão contra a legalização de tais direitos aos casais do mesmo sexo e nem todos são contra o direito das mulheres que não podem ser mãe de encontrarem outras alternativas para seus problemas de gestação, problemas que não são, diga-se de passagem, nada simples e muitas vezes são bastante traumáticos para muitas mulheres, criadas (e ensinadas, como diria Beauvoir) para serem mães de seus próprios filhos.

Eu tive o privilégio de participar aqui em Paris, no mesmo dia em que aconteceu uma manifestação da Manif Pour Tous, de uma outra manifestação em favor das famílias, mas essa manifestação não se fechou para o sentido de família tradicional. Organizada também via mídias sociais com a hashtag #ManifPourÉgalité, essa outra manifestação chamou os franceses para protestarem por igualdade e para responderem  livremente uma única pergunta: “O que é a família para você?”

Ao contrário de uma afirmação de pré-conceitos a #ManifPourÉgalité reuniu os franceses, sobretudo as crianças, na tarefa singela de escrever seu conceito de família e pendurar em um mural estendido na Praça da République. Entre as várias definições de família, escrita por pessoas de todas as idades, podíamos ler coisas como:

“Um dia eu espero que eu possa ter um bebê com minha mulher.” , “Somos nós: duas mamães + uma pequena jovem.”, “Minha família são meus amigos”

Toda essa discussão atual sobre o direito de união, as garantias civis, a questão da adoção e os desejos de maternidade me fazem pensar na recusa de Beauvoir ao casamento e à maternidade. O que seria nos dias atuais essa instituição casamento? Coisa tão difícil de definir quanto a palavra família, com tantos belos e trágicos significados e arranjos.

Importante observar que Simone de Beauvoir não era contra o casamento ou à maternidade, nem defendia isso ou aquilo por questões morais. Ela era contra a submissão da mulher a qualquer pessoa ou instituição.  Em seu tempo o casamento era um instrumento quase certo de submissão feminina porque estava dentro de um contexto de subordinação, assim como a maternidade era praticamente um imposição, o que a levou a defender que ser mãe é uma escolha e não deveria ser uma obrigação.

A mulher , dizia a pensadora, deveria mudar a sua condição de segundo sexo. No fundo, é uma questão de igualdade (não ser contra o homem ou a algo, mas criar os instrumentos para ser livre, para se o que se é).

Mas e hoje? Como interpretar tantas mulheres e homens e jovens aderindo a uma Manif Pour Tous, em detrimento de todos, defendendo um único tipo de união, de contrato, de maternidade, mesmo quando o Estado, para atender aos pedidos desses tantos, promulga uma Lei que irá garantir que cada família se constitua livremente, que faça livremente suas escolhas, sexuais e afetivas?

Nem o mundo, nem a Paris de Beauvoir, infelizmente, estão perto de tais conquistas sem que haja ainda muita luta, porque para infelicidade da pensadora (caso ela pudesse acompanhar os protestos atuais), que esperava ver um dia seu livro sobre a condição da mulher superada, muitas de suas ideias ainda sobre a liberdade não foram se quer cogitadas por nossas sociedades. E, infelizmente, ainda podemos ver uma a criação de uma #ManifPourTous, sob a batuta de uma mulher, defender um modelo de família no qual a maternidade, por exemplo, é um direito exclusivo e inalienável de alguns privilegiados, “abençoados” talvez com a “graça divina” por serem heterossexuais e férteis.

Um dos cartazes impressos pela manifestação propositiva #ManifPourÉgalité era: “o amor ganha sempre!”. Será? Tomara!

Fotos: Julia Tenório.
Para saber mais sobre as reivindicações das duas manifestações, clique aqui.

 

 

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